Três Uvas e um Enigma
Beber e comer é um dos meus esportes favoritos, e há décadas
bebo cava, o espumante catalão, em quantidades cavalares. Na minha família
qualquer motivo é motivo para abrir uma garrafa de Codorniu, Freixenet, Portell,
Raventós ou Gramona. A gente simplesmente abre, bebe e celebra. Sem
questionamentos.
Mas a maturidade, descobri agora, traz consigo questões
profundas sobre os enigmas da vida. A busca de respostas para perguntas fundamentais
que você nunca tinha feito antes passam a ser prioridade. E como meus primeiros
cinquenta anos foram passados entre muitos pratos e copos, comecei a questionar
também o que eu comia e bebia. Acabou sobrando pro cava, coitado.
Xarel.lo, macabeo e parellada
Enquanto todo mundo já provou vinhos feitos com chardonnay e
pinot noir, as duas principais uvas do champanhe, pouca gente conhece xarel.lo,
macabeo e parellada em outra forma que não seja como cava, e isso me deixou encafifado:
Porque as uvas do champanhe fazem ótimos
vinhos enquanto as do cava parecem só funcionar quando juntas, cheias das
borbulhas de uma segunda fermentação?
Quem ainda acompanha o Bistrô já imaginou que esse tipo de questionamento
dá a oportunidade de promover mais uma vez um dos meus eventos favoritos: Bem-vindos
à Primeira Degustação Cega de Uvas do
Cava do Bistrô Carioca.
As pessoas
Dizem que ter uma boa ideia é fácil, difícil é vender uma
boa ideia. Não foi o caso dessa degustação. Mlle. B, que gentilmente cedeu sua
mesa, e M. MeS e seu Larousse mental, são maduros como eu para não dormirem à
noite com os mesmos tipos de questões fundamentais na cabeça. Compraram a ideia
de primeira.
As garrafas
Difícil foi encontrar por aqui aqui três garrafas de
varietais de xarel.lo, macabeo e parellada, já que mais de 90% da produção
delas vai para o cava. Mas com um pouco de sorte consegui achar um xarel.lo 100%
do Club des Somelliers do Pão de Açúcar, um Artero com 75% de macabeo e 25% de
verdejo e um Viña Brava da Torres com metade parellada e metade garnacha
blanca. Não é o ideal, mas é o que temos para hoje.
Já deu para sentir que a dificuldade de encontrar varietais
das três uvas autóctones do Penedès mostra que eu talvez esteja exigido muito
delas e das vinícolas e as três uvas não tenham mesmo nascido para uma
vinificação simples. A gigante Torres, com sede no terroir do cava, que produz
de tudo em matéria de vinhos em três continentes, só tem 100% parellada em um
semi-doce. Nada de xarel.lo ou macabeo.
A degustação
Tinhamos quatro copos na mesa, três com os vinhos e um com o
cava, e em duas etapas tentamos identificar primeiro qual era cada uma das uvas
com base na descrição do vinho feita pela vinícola, e depois encontrá-las no
cava, um Gramona espetacular da Mlle. B.
A xarel.lo logo apareceu. Seca, séria, algo untuosa, nada de
papelão molhado como afirmavam alguns. Foi a única unanimidade na mesa, os três
matamos em qual copo estava. O vinho em si não é grandes coisas, mas mostra que
é essa uva que dá o ponto no cava, onde ela aparece bem fácil quando se sabe o
que ela traz, claro.
A parellada e a macabeo, misturadas à outras uvas no corte, foram
mais difíceis de diferenciar. Mas antes de acabarem as garrafas – degustações
sérias como as nossas nunca terminam antes das garrafas – dois de nós acertamos
qual era. A diferença entre as duas é muito sutil como também suas presenças no
Gramona. Muito difícil encontrá-las mesmo sabendo o que procurar.
Como ninguém é de ferro, depois de quatro brancos, M. MeS sacou
da cartola um Ventolera 2014 pinot noir+syrah sensacional. Ele explicou que era
com esse corte que se fazia vinho na Borgonha até escolherem ficar apenas com a
pinot, numa decisão que deve ter sido tomada pelo marketing de alguma vinícola,
com certeza.
Nas degustações às cegas do Bistrô aprende-se tanto quanto se
bebe e diverte-se mais do que qualquer coisa. Nessa última, além do aprendizado
e da diversão, descobri que produzir cava deve ser muito mais difícil do que
champanhe pois as uvas não ajudam. Nenhuma das três que provamos mostrou individualmente
o poder e a presença de uma chardonnay ou a leveza quase sem graça da pinot
noir. É de impressionar que as três juntas consigam produzir algo tão bacana e
importante como a Gramona que bebemos. Palmas para os produtores, pois não é à
toa que o cava hoje está presente em qualquer carta, com preço e qualidade
muito competitivos.
Mas o mais importante da noite foi que a fila andou, e agora
posso dormir com mais um enigma fundamental da vida respondido. Tomara que os outros
tragam tanto prazer na busca das respostas quanto este trouxe.
Marcadores: Degustações
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