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31.8.16

Três Uvas e um Enigma


Beber e comer é um dos meus esportes favoritos, e há décadas bebo cava, o espumante catalão, em quantidades cavalares. Na minha família qualquer motivo é motivo para abrir uma garrafa de Codorniu, Freixenet, Portell, Raventós ou Gramona. A gente simplesmente abre, bebe e celebra. Sem questionamentos.
Mas a maturidade, descobri agora, traz consigo questões profundas sobre os enigmas da vida. A busca de respostas para perguntas fundamentais que você nunca tinha feito antes passam a ser prioridade. E como meus primeiros cinquenta anos foram passados entre muitos pratos e copos, comecei a questionar também o que eu comia e bebia. Acabou sobrando pro cava, coitado.
Xarel.lo, macabeo e parellada
Enquanto todo mundo já provou vinhos feitos com chardonnay e pinot noir, as duas principais uvas do champanhe, pouca gente conhece xarel.lo, macabeo e parellada em outra forma que não seja como cava, e isso me deixou encafifado: Porque as uvas do champanhe fazem ótimos vinhos enquanto as do cava parecem só funcionar quando juntas, cheias das borbulhas de uma segunda fermentação?
Quem ainda acompanha o Bistrô já imaginou que esse tipo de questionamento dá a oportunidade de promover mais uma vez um dos meus eventos favoritos: Bem-vindos à Primeira Degustação Cega de Uvas do Cava do Bistrô Carioca.
As pessoas
Dizem que ter uma boa ideia é fácil, difícil é vender uma boa ideia. Não foi o caso dessa degustação. Mlle. B, que gentilmente cedeu sua mesa, e M. MeS e seu Larousse mental, são maduros como eu para não dormirem à noite com os mesmos tipos de questões fundamentais na cabeça. Compraram a ideia de primeira.
As garrafas
Difícil foi encontrar por aqui aqui três garrafas de varietais de xarel.lo, macabeo e parellada, já que mais de 90% da produção delas vai para o cava. Mas com um pouco de sorte consegui achar um xarel.lo 100% do Club des Somelliers do Pão de Açúcar, um Artero com 75% de macabeo e 25% de verdejo e um Viña Brava da Torres com metade parellada e metade garnacha blanca. Não é o ideal, mas é o que temos para hoje.
Já deu para sentir que a dificuldade de encontrar varietais das três uvas autóctones do Penedès mostra que eu talvez esteja exigido muito delas e das vinícolas e as três uvas não tenham mesmo nascido para uma vinificação simples. A gigante Torres, com sede no terroir do cava, que produz de tudo em matéria de vinhos em três continentes, só tem 100% parellada em um semi-doce. Nada de xarel.lo ou macabeo.
A degustação
Tinhamos quatro copos na mesa, três com os vinhos e um com o cava, e em duas etapas tentamos identificar primeiro qual era cada uma das uvas com base na descrição do vinho feita pela vinícola, e depois encontrá-las no cava, um Gramona espetacular da Mlle. B.
A xarel.lo logo apareceu. Seca, séria, algo untuosa, nada de papelão molhado como afirmavam alguns. Foi a única unanimidade na mesa, os três matamos em qual copo estava. O vinho em si não é grandes coisas, mas mostra que é essa uva que dá o ponto no cava, onde ela aparece bem fácil quando se sabe o que ela traz, claro.
A parellada e a macabeo, misturadas à outras uvas no corte, foram mais difíceis de diferenciar. Mas antes de acabarem as garrafas – degustações sérias como as nossas nunca terminam antes das garrafas – dois de nós acertamos qual era. A diferença entre as duas é muito sutil como também suas presenças no Gramona. Muito difícil encontrá-las mesmo sabendo o que procurar.
Como ninguém é de ferro, depois de quatro brancos, M. MeS sacou da cartola um Ventolera 2014 pinot noir+syrah sensacional. Ele explicou que era com esse corte que se fazia vinho na Borgonha até escolherem ficar apenas com a pinot, numa decisão que deve ter sido tomada pelo marketing de alguma vinícola, com certeza.
Nas degustações às cegas do Bistrô aprende-se tanto quanto se bebe e diverte-se mais do que qualquer coisa. Nessa última, além do aprendizado e da diversão, descobri que produzir cava deve ser muito mais difícil do que champanhe pois as uvas não ajudam. Nenhuma das três que provamos mostrou individualmente o poder e a presença de uma chardonnay ou a leveza quase sem graça da pinot noir. É de impressionar que as três juntas consigam produzir algo tão bacana e importante como a Gramona que bebemos. Palmas para os produtores, pois não é à toa que o cava hoje está presente em qualquer carta, com preço e qualidade muito competitivos.
Mas o mais importante da noite foi que a fila andou, e agora posso dormir com mais um enigma fundamental da vida respondido. Tomara que os outros tragam tanto prazer na busca das respostas quanto este trouxe. 

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