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27.9.16

M, de Maionese

Muita gente não considera maionese nem como molho. Muita gente não sentiria falta se maionese deixasse de existir. Muita gente acha que não deveria nem ter sido inventada.
Mas nem tanta gente assim, pois maionese é um sucesso mundial. Do Japão ao Chile, pelo caminho mais longo, ela assume diferentes personalidades, inúmeros usos e como não é uma unanimidade, odiar maionese se tornou um esporte.
Eu adoro, mas até entendo quem não goste. Entendo quem não goste sem nunca ter provado outra coisa que não uma Hellmann’s ou Heinz. Maioneses industrializadas têm perto de vinte ingredientes, a original tem apenas três. É o less is more máximo da cozinha.
Classificar como original uma receita de maionese é complicado, pois sua origem tampouco é uma unanimidade. Também pudera, azeite, ovo e sal existem praticamente em qualquer lugar, combiná-los num único preparo exige alguma esperteza, mas não é exatamente algo científico. Qualquer um poderia tê-la inventado.
A origem menos controversa é que a maionese foi criada em Mahon, capital da ilha de Menorca, na costa espanhola do mediterrâneo, e porto tão estratégico que trocou de mãos entre romanos, árabes, visigodos, franceses, ingleses e espanhóis diversas vezes na história, quase sempre com alguma batalha épica. Numa delas um comandante francês gourmet faminto que pode até ter sido Richelieu, achou que seu jantar estava além de insosso, seco, que precisava muito de algum molho. Mas ele não podia usar o fogo sob o risco de denunciar sua posição. Pressionado por esse inimigo pior do que os ingleses ele juntou ingredientes à mão, criou e batizou, mas não patenteou, a Mahonesa e de quebra, como uma homenagem ou não à sua criação, retomou para a França a capital da ilha. Que depois foi entregue de volta aos ingleses e depois aos espanhóis, mas isso é outra história.
Esse francês inventou o que na história da culinária é considerada a primeira grande contribuição em matéria de molhos depois das dodines criadas por Taillevent cem anos antes. Em comum entre os dois é que nenhum deles usa manteiga ou farinha no seu preparo. Sim, um dia a França comeu sem esses dois ingredientes.
Impossível para mim falar de maionese sem falar de allioli. All (alho em catalão, pronuncia-se alh) i (e) oli (azeite) alho e azeite, alhioli - não aioli como dizem erradamente por aí até com trema, aiöli, ridículo. Allioli tem também apenas três ingredientes, o outro é sal, e é o que há de mais parecido com a maionese original. É apenas alho, azeite e sal amassados num morteiro criando uma pasta que fica com um aspecto parecido ao da sua prima francesa que é emulsionada.
Minha suspeita é que o comandante francês tinha um chef esperto que deu um tapa bacana no allioli que encontrou em Mahon e o transformou em maionese. Faz todo sentido.
Quase 150 anos depois foi a vez da maionese levar um tapa e se transformar no produto onipresente que temos hoje. Foi numa delicatessen em Nova York que tinha tantos elogios pela versão caseira de maionese usada nas suas saladas que passou a vendê-la em separado com enorme sucesso. O dono da deli se chamava Richard Hellmann e seu sobrenome está hoje em todos os mercados do mundo. Isso foi há 103 anos, em 1905.
Maionese e salada foram tão feitos um para o outro que aqui no Brasil, maionese é sinônimo de salada de batatas. Salada de batatas é também um dos pratos mais típicos da Alemanha. Na Holanda batata frita com maionese se come nas ruas e no Japão ela é usada até no yakisoba. Nem vou falar que qualquer hambúrguer fica melhor com uma dose de maionese e que um dos meus canapés preferidos é uma pasta de maionese, cebola picadinha e queijo parmesão sobre uma torradinha e gratinada no forno.

Não dá para chamar maionese de alimento, ela não é nada gourmet, seu aspecto e textura tampouco são grande coisa, não dá para comer pura, nunca é protagonista e não deve ser lá muito saudável. Mas deu muito certo. Maionese tem o seu valor, uma história bacana, é super versátil e faz parte do dia a dia de cozinhas, lanchonetes, food trucks e restaurantes no mundo todo. Apesar de ter tanta gente contra.

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21.9.16

Elvira, Seu Miguel e um lindo penteado

Sei exatamente de onde veio meu prazer em comer e beber bem. Veio no sangue. Mas não sei de onde veio o prazer e a vontade de cozinhar. Mentira, sei sim, mas isso é outra história que não tem nada a ver com sangue, muito pelo contrário. Se dependesse só do sangue eu nunca teria entrado numa cozinha.
Mal conheci minha bisavó materna, mas conheci bem sua filha, minha avó, e sei que de cozinha ela sabia pouco mais do que sua localização na casa. Minha mãe seguiu quase o mesmo caminho. Sabe um pouco mais, mas não tem nenhum prazer em cozinhar. Meu pai é um gourmet que consegue queimar torradas na torradeira automática. Então vamos combinar que se fosse hoje, a cozinha da casa dos meus pais e avó seria substituída pelo iFood.
Uma das muitas histórias que ilustram essa quase aversão da família pela cozinha circula pelas nossas mesas há gerações e quem poderia confirmá-la já não está mais entre nós. Mas como a versão é sempre melhor do que o fato, e conhecemos muito bem os personagens, a gente crê na história sem questionamentos.
Minha avó, já viúva, com duas filhas e trabalhando dobrado para sustentar a família, contava há anos com a Elvira, seu braço direito e esquerdo na casa. Ela era daquele tipo de doméstica que não se sabe bem de onde veio, ela simplesmente sempre esteve lá e lá continuou mesmo depois desse episódio.
Elvira não era grande cozinheira, nem ninguém na casa exigia isso dela, mas era muito melhor do que qualquer outra pessoa por ali. No dia a dia ela sabia bem o que cozinhar, e quando o momento pedia algo mais, minha avó abria seu Miguel de Carvalho escolhia um prato pela foto e ia para o trabalho. Elvira que se virasse.
Um desses momentos especiais foi um jantar para amigos que moravam no Sul e estavam visitando o Rio. A foto que minha avó escolheu como prato naquela noite tinha um purê de batatas gratinado e lindamente decorado num desenho de ondas parecido com o calçadão de Copacabana que ainda seria feito ali perto.
O jantar foi um sucesso, todos elogiaram não só o paladar, mas também a beleza do purê servido numa grande travessa de louça portuguesa e surpreendendo até minha avó, que deu todo o crédito à Elvira.
No dia seguinte, naquele corre-corre do café da manhã, Elvira estava toda prosa com seu sucesso:
- Quando quiser posso fazer aquele prato de novo, Dona Antonieta. É muito fácil.
- Achei que era difícil fazer aquele purê, Elvira. Ficou lindo.
- É nada Dona Antonieta. Botei bastante manteiga e queijo no purê como manda o Seu Miguel.
- E os desenhos de ondas, como você fez?
- Com meu pente de cabelo, ué? Com o garfo ficava muito pequenininho...
Elvira continuou por anos e anos cozinhando para essa família que passa longe de panelas e fogões, e o purê de batata gratinado do Seu Miguel virou o seu signature dish, tão importante que ganhou um pente próprio para ficar sempre com as ondas perfeitas.
Minha mãe, minha tia e minha avó até tentaram copiar o purê da Elvira, mas nunca ficou igual. Não está no sangue, né?


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13.9.16

Estragando crianças e consertando equipes de trabalho. Quatro histórias com vinho e cerveja

Acho que nunca houve uma refeição na minha casa onde não houvesse pelo menos uma garrafa de vinho na mesa. Lembro perfeitamente do meu pai abrindo garrafas de Precioso e Mateus Rosé no almoço e no jantar. Mais ainda, lembro dele colocando um pouco de vinho e açúcar no meu copo e completando com água para bebermos juntos. Eu tinha uns cinco anos e mal conseguia comer na mesa, mas já bebia vinho. Se fosse hoje, tinha post no Instagram todo dia. Álcool na mesa nunca foi uma questão na minha casa. Refeições são acompanhadas de vinho e ponto final. Nada mais natural.
Mas essa naturalidade no convívio com o álcool à mesa já me trouxe alguns constrangimentos e histórias engraçadas.
Anos 90, eu morando em Barcelona e trabalhando full time num escritório de arquitetura com longa pausa para o almoço das duas às quatro da tarde. Enquanto aqui eu estava acostumado a comer um sanduíche e um suco em meia hora, lá todo restaurante tem um menu preço fixo com dois pratos, sobremesa, café e, claro, vinho incluído. O primeiro mês foi terrível, minha produtividade da tarde era perto de zero, escolhia as tarefas mais braçais enquanto meus colegas tinham reuniões decisivas de projetos enormes. Mas depois meu fígado fez um clique e passou a assimilar a dose diária vespertina de álcool como se água fosse. Outro clique foi que instantaneamente me senti mais integrado naquela sociedade com uma dieta que, dizem, é a mais saudável. Na minha opinião não é só a dieta mediterrânea que faz bem, é também a forma como eles tratam a comida, a bebida e principalmente a mesa, nunca como uma simples refeição, mas como um momento de parar e relaxar sempre com a ajuda de um vinhozinho, claro.
Corta para 2010, eu trabalhando no escritório de Los Angeles de uma empresa alemã, conhecendo o novo chefe americano num almoço com a equipe. Vinho ou cerveja já era há muito tempo parte da minha cesta básica do almoço, mas ali eu travei. Não consegui pedir nem um pint para refrescar e encarei a refeição com um chá gelado estranho que todos pediram. Essa necessidade de parecer sempre politicamente correto dos EUA está por todo lado e é um inferno. Mas minha vingança não demorou.
No ano seguinte a mesma reunião, com o mesmo pessoal só que em Berlim.
Segunda-feira, eu tinha feito a Maratona de Berlim no dia anterior e estava me sentindo um super-homem sentado na mesa do almoço com minha medalha no pescoço (no dia seguinte das grandes maratonas do mundo, quem completou a prova sai com sua medalha pendurada e é literalmente reverenciado na rua, uma sensação melhor de que completar a maratona em si).  Dia lindo, almoço numa praça, o chefe americano adorando meu trabalho. Nem vi quando o garçom colocou na minha frente uma tulipa gelada de Berliner. Devo ter pedido de forma tão natural que nem percebi a “gafe”. Gafe que no dia seguinte foi cometida por todos na mesa quando descobri que os alemães não pediam cerveja no almoço por medo da imagem que passariam aos americanos. O politicamente correto estava literalmente estragando o relacionamento da equipe. Precisou aparecer um maratonista brasileiro sem vergonha de quem é, para pôr ordem na casa.
Mas nenhuma dessas histórias de álcool à mesa supera a primeira, que não foi exatamente numa mesa. Volta a fita.
Anos 70, eu com seis ou sete anos viajando com minha avó para conhecer a família em Fortaleza numa época em que as companhias aéreas serviam drinques antes das refeições. A comissária se aproxima de nós com o carrinho de bebidas e pergunta:
- A senhora gostaria de beber algo antes do almoço?
- Não, obrigado.
- E o neném, vai querer um guaraná?
- Não, um Martini doce, por favor. Com gelo.
Antes mesmo que a comissária pudesse sorrir, minha avó interveio com uma resposta que hoje a levaria para a cadeia ao desembarcar:
- Pode servir, ele está acostumado. Mas bota um pouco de água com gás, por favor.
Dividi meu drinque bem aguado com a vovó que sempre tinha uma garrafa de Cinzano na geladeira e outra de Lachryma Christi no bar de casa.
Sabia tudo a vovó.

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