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13.9.16

Estragando crianças e consertando equipes de trabalho. Quatro histórias com vinho e cerveja

Acho que nunca houve uma refeição na minha casa onde não houvesse pelo menos uma garrafa de vinho na mesa. Lembro perfeitamente do meu pai abrindo garrafas de Precioso e Mateus Rosé no almoço e no jantar. Mais ainda, lembro dele colocando um pouco de vinho e açúcar no meu copo e completando com água para bebermos juntos. Eu tinha uns cinco anos e mal conseguia comer na mesa, mas já bebia vinho. Se fosse hoje, tinha post no Instagram todo dia. Álcool na mesa nunca foi uma questão na minha casa. Refeições são acompanhadas de vinho e ponto final. Nada mais natural.
Mas essa naturalidade no convívio com o álcool à mesa já me trouxe alguns constrangimentos e histórias engraçadas.
Anos 90, eu morando em Barcelona e trabalhando full time num escritório de arquitetura com longa pausa para o almoço das duas às quatro da tarde. Enquanto aqui eu estava acostumado a comer um sanduíche e um suco em meia hora, lá todo restaurante tem um menu preço fixo com dois pratos, sobremesa, café e, claro, vinho incluído. O primeiro mês foi terrível, minha produtividade da tarde era perto de zero, escolhia as tarefas mais braçais enquanto meus colegas tinham reuniões decisivas de projetos enormes. Mas depois meu fígado fez um clique e passou a assimilar a dose diária vespertina de álcool como se água fosse. Outro clique foi que instantaneamente me senti mais integrado naquela sociedade com uma dieta que, dizem, é a mais saudável. Na minha opinião não é só a dieta mediterrânea que faz bem, é também a forma como eles tratam a comida, a bebida e principalmente a mesa, nunca como uma simples refeição, mas como um momento de parar e relaxar sempre com a ajuda de um vinhozinho, claro.
Corta para 2010, eu trabalhando no escritório de Los Angeles de uma empresa alemã, conhecendo o novo chefe americano num almoço com a equipe. Vinho ou cerveja já era há muito tempo parte da minha cesta básica do almoço, mas ali eu travei. Não consegui pedir nem um pint para refrescar e encarei a refeição com um chá gelado estranho que todos pediram. Essa necessidade de parecer sempre politicamente correto dos EUA está por todo lado e é um inferno. Mas minha vingança não demorou.
No ano seguinte a mesma reunião, com o mesmo pessoal só que em Berlim.
Segunda-feira, eu tinha feito a Maratona de Berlim no dia anterior e estava me sentindo um super-homem sentado na mesa do almoço com minha medalha no pescoço (no dia seguinte das grandes maratonas do mundo, quem completou a prova sai com sua medalha pendurada e é literalmente reverenciado na rua, uma sensação melhor de que completar a maratona em si).  Dia lindo, almoço numa praça, o chefe americano adorando meu trabalho. Nem vi quando o garçom colocou na minha frente uma tulipa gelada de Berliner. Devo ter pedido de forma tão natural que nem percebi a “gafe”. Gafe que no dia seguinte foi cometida por todos na mesa quando descobri que os alemães não pediam cerveja no almoço por medo da imagem que passariam aos americanos. O politicamente correto estava literalmente estragando o relacionamento da equipe. Precisou aparecer um maratonista brasileiro sem vergonha de quem é, para pôr ordem na casa.
Mas nenhuma dessas histórias de álcool à mesa supera a primeira, que não foi exatamente numa mesa. Volta a fita.
Anos 70, eu com seis ou sete anos viajando com minha avó para conhecer a família em Fortaleza numa época em que as companhias aéreas serviam drinques antes das refeições. A comissária se aproxima de nós com o carrinho de bebidas e pergunta:
- A senhora gostaria de beber algo antes do almoço?
- Não, obrigado.
- E o neném, vai querer um guaraná?
- Não, um Martini doce, por favor. Com gelo.
Antes mesmo que a comissária pudesse sorrir, minha avó interveio com uma resposta que hoje a levaria para a cadeia ao desembarcar:
- Pode servir, ele está acostumado. Mas bota um pouco de água com gás, por favor.
Dividi meu drinque bem aguado com a vovó que sempre tinha uma garrafa de Cinzano na geladeira e outra de Lachryma Christi no bar de casa.
Sabia tudo a vovó.

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