Elvira, Seu Miguel e um lindo penteado
Sei exatamente de onde veio meu prazer em comer e beber bem.
Veio no sangue. Mas não sei de onde veio o prazer e a vontade de cozinhar. Mentira,
sei sim, mas isso é outra história que não tem nada a ver com sangue, muito
pelo contrário. Se dependesse só do sangue eu nunca teria entrado numa cozinha.
Mal conheci minha bisavó materna, mas conheci bem sua filha,
minha avó, e sei que de cozinha ela sabia pouco mais do que sua localização na
casa. Minha mãe seguiu quase o mesmo caminho. Sabe um pouco mais, mas não tem nenhum
prazer em cozinhar. Meu pai é um gourmet que consegue queimar torradas na torradeira
automática. Então vamos combinar que se fosse hoje, a cozinha da casa dos meus
pais e avó seria substituída pelo iFood.
Uma das muitas histórias que ilustram essa quase aversão da
família pela cozinha circula pelas nossas mesas há gerações e quem poderia confirmá-la
já não está mais entre nós. Mas como a versão é sempre melhor do que o fato, e
conhecemos muito bem os personagens, a gente crê na história sem questionamentos.
Minha avó, já viúva, com duas filhas e trabalhando dobrado
para sustentar a família, contava há anos com a Elvira, seu braço direito e
esquerdo na casa. Ela era daquele tipo de doméstica que não se sabe bem de
onde veio, ela simplesmente sempre esteve lá e lá continuou mesmo depois
desse episódio.
Elvira não era grande cozinheira, nem ninguém na casa exigia isso
dela, mas era muito melhor do que qualquer outra pessoa por ali. No dia a dia
ela sabia bem o que cozinhar, e quando o momento pedia algo mais, minha avó
abria seu Miguel de Carvalho escolhia um prato pela foto e ia para o trabalho.
Elvira que se virasse.
Um desses momentos especiais foi um jantar para amigos que
moravam no Sul e estavam visitando o Rio. A foto que minha avó escolheu como
prato naquela noite tinha um purê de batatas gratinado e lindamente decorado
num desenho de ondas parecido com o calçadão de Copacabana que ainda seria
feito ali perto.
O jantar foi um sucesso, todos elogiaram não só o paladar,
mas também a beleza do purê servido numa grande travessa de louça portuguesa e surpreendendo até minha avó, que deu todo o crédito
à Elvira.
No dia seguinte, naquele corre-corre do café da manhã, Elvira
estava toda prosa com seu sucesso:
- Quando quiser posso fazer aquele prato de novo, Dona
Antonieta. É muito fácil.
- Achei que era difícil fazer aquele purê, Elvira. Ficou
lindo.
- É nada Dona Antonieta. Botei bastante manteiga e queijo no
purê como manda o Seu Miguel.
- E os desenhos de ondas, como você fez?
- Com meu pente de cabelo, ué? Com o garfo ficava muito
pequenininho...
Elvira continuou por anos e anos cozinhando para essa família
que passa longe de panelas e fogões, e o purê de batata gratinado do Seu Miguel
virou o seu signature dish, tão
importante que ganhou um pente próprio para ficar sempre com as ondas
perfeitas.
Minha mãe, minha tia e minha avó até tentaram copiar o purê
da Elvira, mas nunca ficou igual. Não está no sangue, né?
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