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20.4.06

Comendo o de sempre

Que a cozinha espanhola e principalmente a da Catalunha estão na moda ninguém discute. Mas tenho visto que nessa matéria a gente aqui no Brasil só tem noticias sobre as últimas invenções dos vários ferrans adriás da vez, com pratos e técnicas mirabolantes. Às vezes chegam também notícias sobre a cozinha mediterrânea e seus vinhos, azeites, peixes e embutidos que desafiam nutricionistas, dietas e conceitos de “boa” alimentação. Pouco se fala da cozinha tradicional, daquela que resiste aos ataques da moda e da globalização e que, ao contrário do que possa parecer, não só sobrevive como aprofunda suas raízes no dia a dia dos catalães.

Minha primeira vez em Barcelona foi aos quatro anos quando meus pais me levaram para conhecer meu avô. Já perdi a conta de quantas vezes voltei e no início dos anos noventa morei lá por três anos, bem no meio da revolução olímpica. Vivi intensamente sua transformação de uma cidade pacata em uma metrópole internacional.
Mas só na semana passada entendi um detalhe evidente nessa transformação que por ser tão simples e não me causar nenhum impacto, não tinha percebido antes: o que faz seus moradores saírem de casa para comer não são os novos restaurantes nem os novos pratos nem as refeições que são tratadas como eventos. O que sustenta e realmente diferencia a gastronomia da Catalunha são restaurantes que, com pouca ou nenhuma pretensão de revolucionarem nada, estão no mesmo lugar servindo a mesma comida desde sempre.

Nos dias que passei na cidade me dediquei a apresentar à minha mulher alguns restaurantes que eu sempre fui com minha família e os que eu freqüentava quando morava lá. A ficha caiu quando ela comentou que nenhum deles tinha fechado as portas, que todos ainda existiam depois de tantos anos. Comigo o espanto foi diferente; em todos eles comemos o que eu sempre comi, nem precisei olhar os cardápios. O pior é que com uma ou duas exceções, nenhum deles pode ser considerado um restaurante tradicional. São apenas casas que fazem as coisas simples, bem feitas e por isso contam com a fidelidade da sua clientela. E bota fidelidade nisso.

A Espanha é o país da Europa que possui mais bares e restaurantes per capita. A oferta é enorme e por isso mesmo seria de se esperar uma grande rotatividade de locais, um abre-e–fecha de acordo com a velocidade das solicitações do mercado. Mas ao que parece, o mercado de verdade não tem essa velocidade toda e, pelo menos para mim, é exatamente esse aparente paradoxo um dos grandes atrativos gastronômicos da cidade.

Acho ótima essa ebulição gastronômica catalã que nos é vendida aqui, como se em qualquer restaurante a gente fosse encontrar espumas, ares e picolés de açafrão para comer. Penso que, se as pessoas vão à Barcelona para provar a contemporaneidade da sua culinária, grupo no qual ainda me incluo, acabam mesmo impressionadas e extasiadas é com o que sempre esteve ali. Acho que as lembranças de pratos e sabores indeléveis que os visitantes vão levar serão antes as da tradição do que as da modernidade. Isso só é possível por que ao contrário do que acontece numa cidade como Nova York, onde os restaurantes são obrigados a se re-inventar a cada estação para sobreviver, em Barcelona os catalães exigem exatamente o contrário das casas que freqüentam. Exigem que as coisas permaneçam exatamente como são. Dessa forma, os novos chefs catalães são mais rebeldes e revolucionários que os anarquistas históricos. Jogaram para o alto esta solicitação do mercado, a simplicidade quase rústica da culinária praticada até então e, somando os ensinamentos da cozinha mais refinada do País Basco, trouxeram literalmente novos ares à gastronomia da região.

Imagino que a enorme visibilidade que esta nova gastronomia da Catalunha ganhou, representada apenas por uma ou duas dúzias de restaurantes, tenha como uma de suas grandes conseqüências trazer mais gente para provar a velha cozinha da região. Numa cidade cosmopolita como Barcelona, onde é normal escutar três ou quatro idiomas diferentes numa esquina, acho que quem prova sua variada culinária, volta para casa falando mesmo é de suquets, pernils, fideuás, calçots e esqueixadas, além do onipresente pão com tomate, que sempre existiram, que sempre foram feitos da mesma maneira, com os mesmo riquíssimos sabores, nos mesmos lugares. Mas como notícia velha não é notícia, a gente aqui continua mesmo a achar que lá é tudo novidade o que faz a surpresa com a tradição ainda mais intensa.

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